terça-feira, 1 de abril de 2014

Médici: o presidente, a ditadura e o futebol


   O futebol como instrumento de poder é algo antigo na história. Tal uso se mostra mais claro em regimes autoritários, que o o esporte (e com o crescimento de sua popularidade, o futebol) um dos instrumentos para propagar seus ideais políticos. Na história do Brasil, tal processo de iniciaria com Getúlio Vargas e sua ditadura, e daí pra frente os presidentes buscaram sempre incorporar o futebol em sua agenda política. Kubitschek e a seleção na década de 1950, Jango e o uso da seleção para a campanha pró-presidencialismo... E a ditadura militar. O cancelamento de um amistoso entre a seleção brasileira e a soviética por Castelo Branco já mostra o interesse da ditadura pelo futebol, bem como sua "utilidade" para passar determinado ideal. Depois de o fracasso de 1966, a militarização seria mais forte, tema sobre o qual não abordarei aqui devido ao grande número de textos sobre o tema que estão e estarão na internet essa semana. Aqui abordarei Médici, presidente durante os anos de chumbo, milagre econômico e no título do Mundial de 1970. 


 Garrastazu Médici assumiria a presidência da república logo após Castelo Branco, e iniciaria uma quebra na abertura castelista (algo próximo de um liberalismo), indicando para o estatismo e intervenção do dito estado em todas as esferas da economia. Destarte o lado político, de imediato Médici chamou a atenção dos mais atentos por ser visto frequentemente em partidas de futebol da seleção e de clubes, quando presidente. Tal “paixão” pelo desporto bretão culminou com várias teorias, muitas das quais dizem que a pessoa do presidente usava o futebol para se promover, usando-se das declarações do mesmo, em que dizia querer ser o presidente mais popular do mais (como, de fato, acabara sendo na época). Aqui é importante dizer: nemum, nem outro. O presidente não se usava do futebol unicamente para se promover, bem como não podemos dizer que a ligação entre Médici e o futebol não tenha sido explorado pelo governo. Sobre a ligação do então presidente com o esporte, Guterman cita o cronista Carlos Heitor Cony, o qual foi vítima da ditadura:

Médici era fanático por futebol, e não foi armação do regime militar a divulgaçãode algumas de suas fotos mais famosas – ouvindo o jogo no radinho de pilha, enrolado na bandeira nacional por ocasião do tricampeonato e fazendo embaixadas com alguma perícia, o que revelava intimidade com a bola. (CONY apud GUTERMAN, 2006. p.57).

Essa ligação com o futebol era, ainda, bem anterior. Médici havia jogado, quando jovem, no Grêmio de Bagé, e alguns diziam que tinha “um bom chute”. Além disso, sua linguagem era de um torcedor comum, como ao falar do jogo da Copa contra a equipe da Inglaterra, o mesmo definiu os ingleses como “fregueses de caderno”. Lenivaldo Aragão nos fala sobre essa ligação de Médici com o futebol:

O Médici, não sei nem por que ele tava no governo, era militar, tinha aquele jeito dele, agora diziam que ele tirava proveito [do futebol]; é possível que ele tirasse proveito do futebol... Mas antes de ser presidente da república, ele era ligado ao futebol. Ele era... ele servia no terceiro exército lá em Porto Alegre (que ele é gaúcho, aquela coisa toda) ... E ele ia pra jogo; ele foi do Grêmio, foi diretor de futebol do Grêmio (...) mas na realidade diziam que ele ia pro Maracanã, com um radinho de pilha e ia pro jogo lá pra se mostrar popular, mas era uma coisa natural dele, espontâneo. (ARAGÃO, 2014)

Na mesma entrevista, Leunivaldo nos diz que o Grêmio posteriormente tentou “apagar” a participação de Médici no futebol do clube das páginas de sua história, como a tentar apagar a memória da ditadura, que Daniel Aarão Reis classifica como “demonização dos derrotados”.

Entretanto, o governo militar tratou de tirar proveito da imagem do presidente para beneficiar o regime. A necessidade de tornar o regime popular entre as massas (o próprio Médici dissera que desejava ter popularidade perante às massas). O regime ainda carecia de uma legitimação, que por meio da letra da lei não era possível, já que o próprio regime escanteou a constituição “em defesa da legalidade”. Assim, a propaganda do regime se tornou o carro forte nesse processo tendo, nessa fase, Médici como principal produto “a ser vendido”, por assim dizer.


Regime e o esporte começaram a ser associado, traço comum nos regimes autoritários, de modo a ser uma plataforma onde os princípios de um regime podem ser mostrados e aprendidos. Associar Médici ao futebol, ”sobretudo nos momentos vitoriosos, possibilitava a aproximação do regime com as massas, bem com a criação de um vínculo afetivo com a sua principal liderança”(MARCZAL, 2011. p. 303). Essa associação entre Médici, futebol e regime militar não diminuiria o envolvimento do então presidente com o futebol, haja vista sua ligação com o esporte ser anterior ao fato, mas sim visa “reconhecer a capitalização desta relação em proveito da efígie pública que a ditadura buscava construir” (MARCZAL, 2011. p.303).

O próprio presidente tratava de criar um elo entre o desporto e seu governo, como mostra um texto da Revista Manchete sobre a cerimônia da posse:

Disse o General Médici, falando pela televisão: “Precisamos reproduzir, na vida político-administrativa, aquilo que conseguimos até hoje, nas atividades esportivas ou artísticas. É significativo que tenhamos obtido expressivos triunfos exatamente naqueles triunfos exatamente naqueles setores em que ocorre a entusiástica e comovida participação do povo”. (MANCHETE apud MARCZAL, 2011. p.305).

O esporte se torna parâmetro para o governo, e a associação é direta. É tarefa difícil imaginar o que seria do governo Médici se não tivesse vencido a copa, mas muitos dos preceitos e intenções do regime seriam reforçados com a conquista, como veremos mais a frente.

Amante do esporte bretão, torcedor do Grêmio de Porto Alegre e simpatizante do Flamengo, é inegável a paixão de Médici pelo futebol. Igualmente inegável foi a apropriação da propaganda do regime de tal paixão, que às vésperas do Mundial de 1970 serviria e muito para as intenções do regime, tarefa que coube à Assessoria Especial de Relações Públicas (AERP). Sobre e AERP, Marczal nos diz:

Além de vincular os anúncios publicitários pertinentes ao regime, aproveitando-os também das possibilidades viabilizadas pelo esporte, caberia a ela articular os êxitos futebolísticos à imagem do próprio presidente, legítimo apreciador do jogo e ávido torcedor. Sob a luz do discurso publicitário estatal o general assumira novo aspecto, mais próximo da população, no qual figurava simplesmente como “homem comum”. (MARCZAL, 2011. p.307).


Ainda no ano de 1969, na ocasião do milésimo gol de Pelé, a ligação entre o futebol e o poder adquirira tons oficiais. Pelé, que sempre declarou estar ao lado da pátria e do bem da mesma (chegou inclusive a pedir dispensa para servir o exército; segundo o mesmo, o cumprimento de um “dever cívico”), foi recebido pelo presidente e homenageado oficialmente. A partir daí Pelé, que já figurava em diversas propagandas e peças publicitárias, seria o exemplo de brasileiro a ser seguido: o legítimo patriota. Marczal analisa tal passagem com maestria: 


Diante da significativa conotação social, aproximar-se do esporte, bem como de suas principais personalidades, consistia em uma importante estratégia para angariar o prestígio popular. Reconhecer o feito e figurar ao lado de Pelé, diante de seu inegável carisma, configurava uma oportunidade importante à publicidade estatal, particularmente na construção imagética do recém empossado Chefe de Estado. (MARCZAL, 2011. p. 309)